quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Previsão do tempo


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Previsão do Tempo


- Hoje vai fazer sol! Deu no noticiário da TV. Amanda beijou o marido pobre na boca.
Ela não pegou nem casaco e nem sombrinha e saiu apressada para o trabalho.
Quando ela alcançou o ponto de ônibus os pingos de chuva começaram a cair.
-Hoje vai fazer sol! Deu no noticiário da TV. Entrou no coletivo lotado. Pessoas tossiam, pessoas agarravam-se com força para não cair,outras privilegiadas, dormiam sentadas nas cadeiras e as janelas fechadas não deixavam o ar entrar. Ela desceu no seu ponto. O vento soprou forte, a chuva engrossou,seu corpo esfriou.
-Hoje vai fazer sol! Deu no noticiário da TV. Ela chegou no serviço molhada e disse “bom dia” para o porteiro com a voz trêmula.
Sua patroa  abriu a porta de seu apartamento e Amanda entrou tossindo.

-Gripou-se , Amanda?

- Não, é só uma tossezinha sem graça .
Ela trocou de roupa e começou a faxina.
Quando foi embora o frio já tinha tomado conta das ruas de Curitiba.
Chegou em casa com febre e o corpo doído.

A febre aumentou e foi levada as pressas para o pronto socorro.

Esperou horas no corredor gelado.
O marido gritou: - Onde está o médico? Amanda, já em delírio sussurrou: - Hoje vai fazer sol! Deu no noticiário da TV.
O médico por fim chegou. Examinou o corpo: - Sinto muito. A sua mulher está morta!

O marido chorou,vomitou,ardeu em revolta.
Um aparelho de TV dava o noticiário : ...” E a previsão do tempo para amanhã será de sol e temperatura em elevação...”



Isabel Moura



quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Águas do mar


Águas do mar




Se Iemanjá eu sou,
preciso da água para purificar.
Água do mar;mar de profundo azul que daqui só posso relembrar.
Meus dias arrastam-se em martírio até o verão chegar.
Ela sabe,minha mãe Iemanjá,que quando estiver na Bahia oferendas irei levar.









Isabel Moura



segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Será o inferno?


SERÁ O INFERNO?

Agarrar-se à sepultura, despida de promoção e emoção, para decepar o coração.

Orgulhar-se de aparências;
Antagonizar ao redigir;
Fugir, se precisar, redimindo – se a repugna;
Sintetizar a humanidade acalentada, falsamente declamada, exaltada na finalização do ser.

Premeditar o encontro;
Socorrido pelo conto;
Envolver-se no ameno;
Divulgar comercializando do amor ao ser, sem recorrer a dor.

Assassinar o intelecto;
Esfaquear o interior;
Simular o enfraquecimento;
Rolar lágrimas ao mortificar o valor que lhe foi entregue.

Valorizar esteticamente o almejo do ensejo, do porém ao entretanto.

Inferno sagaz, soterrado, pisoteado;
Infecto maternal de ternura angelical.

Enternece o amor;
Adora a dor.

Memoriza o conhecer para nunca esquecer;
Pessimismo vulgar dos fragmentos permanentes;
Símbolos concretos do passado irrequieto;
Ideais personificados ao concatenar pensamentos.

Profissionaliza a mente!

Isabel Moura




sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Os olhos de Juan


OS OLHOS DE JUAN


Enormes nuvens negras cobriam o céu da cidade de Curitiba naquela manhã de domingo.
Os grandes olhos negros e tristonhos de Maria Cristina observavam a chuva forte, através da janela de seu pequenino quarto.
Ela não gostava de “domingos” e muito menos de chuva: “Arre! Vai ser um dia chato daqueles!” – Ela foi para o banheiro, abriu a torneira da pia, pôs as mãos em forma de concha e lavou o rosto: “Merda!!!!!” – ela gritou. A água estava muita gelada e amorteceu suas mãos e rosto. O inverno tinha finalmente chegado e o frio era intenso lá fora. Ela abriu a torneira do chuveiro elétrico e deixou o vapor d’ água quente tomar conta do ambiente. Só então teve coragem de tirar o pijama de pelúcia e entrar debaixo d’água.
Enquanto a água quente escorria por entre as curvas de seu frágil corpo ela tentava relaxar e pensar em um único motivo para continuar vivendo. Depois de tudo por que passara, ela já não tinha esperanças de ser feliz...

Maria Cristina de Albuquerque, era filha única de uma família rica. Ela estudou nas melhores escolas do Paraná, frequentou lugares refinados, conheceu quase o mundo todo e agora vivia em um pequeno apartamento alugado, em um bairro de classe média baixa.
Ela agora conjugava o verbo do “já tive”: “Já tive um grande e bom apartamento, já tive dinheiro, já tive emprego, já tive marido, já tive filhos... e Amor???...Será que tive?”
Suas lembranças a levaram àquele dia, naquele exato momento, onde tudo na sua vida começou a desmoronar...

Ela estava então com 30 anos, seu corpo era ainda rijo e atraente, apesar de já ter dois filhos, seu rosto muito alvo emoldurado por longos cabelos negros lisos e brilhantes, os olhos pareciam duas pérolas negras e seus lábios eram finos e bem delineados. Ela possuía uma beleza invulgar do tipo que as pessoas olham e pensam: “Ela é uma dama”.
Estavam em um lindo e luxuoso navio, ela e o marido. Marcelo a convencera a viajar, pois ele queria muito descansar uns dias e um Cruzeiro no Caribe seria muito bom para os dois.Ela relutou um pouco em ir, pois não queria deixar os filhos pequenos (Joaquim de dois anos e Pedro de quatro anos) sozinhos por muito tempo e o casamento deles já há muito se arrastava em um relacionamento “morno”.

Não se preocupe querida, sua mãe pode ficar com os meninos por uns dias – disse Marcelo com as passagens já compradas nas mãos a olhar para ela.

O primeiro dia no navio foi muito agradável, Marcelo estava muito solícito e procurava acompanhá-la em tudo. Ele era uma pessoa elegante e discreta e não aparentava os seus quarenta e oito anos; usava o cabelo loiro grisalho sempre bem penteado com um pouco de gel. Os olhos muito azuis e astutos estavam sempre a ler alguma coisa. Ele era obcecado por notícias e informações.
Foi naquela noite, em que seu marido ficou no cassino do navio e ela foi tomar um pouco de ar no convés, que ela conheceu Juan!
Maria Cristina estava com o olhar perdido entre o mar escuro e as estrelas, quando um vento um pouco mais forte, arrancou a delicada fivela que prendia seus longos cabelos negros. Ela abaixou-se para pegar a fivela , com os cabelos a voarem soltos e sua mão esbarrou na mão de um homem jovem que também tentava alcançar a fivela. Os dois levantaram ao mesmo tempo e ele, com a fivela nas mãos, entregou –a para Maria Cristina. Foi então que seus olhos fitaram aqueles olhos...Olhos tão escuros, emoldurados por espessas sobrancelhas...Olhos fortes, sensuais...Olhos que até hoje vinham assombrar – lhe em sonhos...A boca de Juan, uma boca carnuda e macia...A pele de Juan, uma pele morena...O corpo de Juan, viril...Sensual. E como que magnetizados, os dois se beijaram ardentemente, sem dizerem uma palavra sequer. Ele então segurou gentilmente suas mãos e conduziu-a até o seu camarote. Maria Cristina percebeu que era um camarote na ala das pessoas que trabalhavam no navio.Os dois ficaram completamente nus e fizeram amor...Ela nunca sentiu prazer igual em toda a sua vida. Parecia que o mundo todo havia parado e só aquele momento importava...Seus corpos se enroscavam e encaixavam -se perfeitamente. Os dois adormeceram e só na manhã seguinte eles conversaram.
Juan era cubano e trabalhava como garçom no navio. Ele estava fazendo a sua última viagem e desembarcaria no próximo porto, em Miami. Comunicaram-se em inglês e espanhol. Então ele fez aquela fatídica pergunta:  “Don´t you wanna come with me , mi amor?”.
E ela foi...Sim, ela teve a coragem de abandonar o marido em pleno navio, abandonar os filhos e toda a sua família e partir com um desconhecido para ter uma vida que ela não tinha a mínima ideia de como seria. Tudo o que importava era Juan e a paixão enlouquecida, avassaladora que consumiu sua pobre alma.
O primeiro ano que viveram juntos em Miami foi muito bom. Eles moravam em uma casa pequena, porém bem iluminada e com um belo jardim, no bairro cubano. Juan conseguiu logo um emprego de garçom em um grande hotel em Miami Beach e Maria Cristina dava aulas de inglês, idioma que dominava muito bem, para imigrantes cubanos.O dinheiro que ganhavam dava para sustentar um lar decentemente e havia ainda uma “reserva” que Juan tinha feito no navio e ela possuía algumas joias que havia levado consigo na viagem.
Durante este período Maria Cristina tentou comunicar-se com sua família em vão. Seus pais a deserdaram e toda a sua herança ficou a favor de seus filhos e o seu marido era o tutor das crianças.Suas cartas nunca foram respondidas e seus telefonemas eram inúteis, pois todos se recusavam a falar com ela.
As coisas complicaram a partir do segundo ano. Juan passou a chegar tarde em casa e não dar satisfações. O dinheiro reserva começou a sumir. Ela então descobriu que Juan devia dinheiro para bookmakers e se ele não pagasse o que devia, eles iriam mata-lo. Ela vendeu algumas joias e conseguiu levantar a quantia necessária para livra-lo da dívida.
Depois de mil pedidos de desculpas e “não farei mais isto”, Juan foi perdoado.
Mais dois anos se passaram  e mesmo depois de tanto tempo juntos, eles ainda sentiam o fogo da paixão a consumi-los. Costumavam fazer amor em todos os cômodos da casa.
Passaram um bom tempo sem preocupações até que Juan começou a jogar e beber novamente.
Certa noite, desconfiada, Maria Cristina seguiu o seu homem. Viu quando ele entrou em uma casa de jogo. Ela cobriu a cabeça com um lenço e entrou também.Ficou a procurar Juan no ambiente lúgubre. Seu coração começou a bater forte e descompassado ao avista-lo sentado no bar a conversar e alisar o cabelo de uma jovem loira que estava ao seu lado.Uma onda de fúria invadiu Maria Cristina, quando ali, bem diante de seus olhos, ele beijou a moça. Ela então  aproximou - se  do casal, deixou cair o lenço que cobria os seus cabelos negros, olhou bem dentro dos olhos de seu amante e foi embora sem pronunciar uma palavra.
Tudo ela poderia ter suportado, mas aquilo foi cruel por demais. O homem a quem amava com tanto fervor e por quem abdicara da própria vida a estava traindo!
Mais uma vez Juan desculpou-se : “ Ella no es nada para mí, Yo te amo!”.
Mais uma vez ela perdoou aquele homem que havia roubado o seu coração, a sua razão.
Por mais quatro anos, ela ainda continuou ao lado de Juan, aturando suas bebedeiras, suas dívidas, suas mulheres.
Também havia momentos felizes. Eles tinham uma roda muito alegre de amigos, imigrantes cubanos, que se reuniam toda semana para cantar, dançar, comer, beber e rir.
Certa vez ela comentou com Juan: “Como seu povo é alegre!” E ele respondeu:  “Nosotros tenemos que celebrar la vida y la alegría de estarnos vivos, mi amor!”.
Os dois costumavam sair para passear aos domingos. Iam à praia, andavam de mãos dadas na beira do mar e esperavam até o surgir da lua para fazerem um pedido. Depois iam para casa e faziam amor...Um amor gostoso, sem pressa, sem culpas.
Um dia Maria Cristina descobriu, o que todos no bairro já sabiam, que Juan engravidou uma moça de apenas 16 anos. Ela resolveu finalmente tomar uma atitude: Vendeu o resto de suas joias e comprou uma passagem para o Brasil.
No dia de sua partida, Juan a observava de longe, no saguão de embarque do aeroporto. Ele poderia tê-la impedido de partir, mas não o fez.

Maria Cristina desembarcou no aeroporto de Curitiba com o coração dilacerado, sem ter um rumo certo a seguir: “O que fazer?”. “Para onde ir?”.
Nunca havia se sentido tão sozinha no mundo. Decidiu procurar um hotel, bem barato, para se hospedar, pois tinha pouco dinheiro consigo e tentaria se comunicar com a família no dia seguinte.
Conseguiu falar com o pai. Ele estava envelhecido e nada disposto a perdoa-la:

 - Depois de quase oito anos você resolve aparecer, como se nada tivesse acontecido? Não tenho mais filha! A minha filha morreu naquele maldito navio!
 - E os meus filhos, Pedrinho e Joaquim? Como eles estão?
- Eles pensam que você está  morta. Foi o que dissemos para eles.
 - MORTA? Mas isto não é justo...Eu tentei me comunicar com eles e com vocês todos estes anos e vocês não respondiam minhas cartas, nem telefonemas...

O velho então olhou bem dentro dos olhos da filha e disse:

 - Acredite Maria Cristina, foi melhor assim!
 - Mas onde eles estão? Onde estão morando?
 - O seu ex - marido casou-se novamente. Seus filhos estão morando em São Paulo com ele e a atual mulher.
 - E mamãe, como ela está?
 - Ela está bem.Está em uma clínica de repouso, em um SPA em Campos do Jordão.
 - Eu quero falar com ela - insistiu Maria Cristina.
 - Eu lhe proíbo! Você não vai perturbar a sua mãe! Ela já sofreu demais por sua causa!

Maria Cristina então foi embora, com as lágrimas a escorrer por todo o seu rosto, já não mais tão jovem e viçoso. As marcas de sofrimento começavam a invadir o seu corpo e a sua alma.
Ela tentou prosseguir a sua vida, ir a luta. Conseguiu um emprego de professora de inglês numa escola e alugou um pequeno apartamento
Pesadelos a perseguiam todas as noites. Sonhava com os olhos de Juan a observa-la e via seus filhos transformarem-se em homens, renega-la e  jogar  pedras no seu corpo.
Ela passou a beber todas as noites. Bebia para relaxar, para conseguir dormir. Depois passou a beber durante o dia, para conseguir viver e seguir adiante.Quando ela se deu conta, o vício do álcool já havia se apoderado do seu ser. Seus alunos começaram a perceber o seu estado de embriaguez e reclamaram à diretoria, o que ocasionou na demissão de Maria Cristina.

A água do chuveiro elétrico começou a esfriar e a sensação desagradável a trouxe de volta à realidade. Ela fechou a torneira do chuveiro, enxugou-se bem rápido, enfiou uma roupa qualquer, olhou pela janela e observou que a chuva havia diminuído. Ela abriu a porta e saiu para a rua deserta e fria daquele domingo.
Maria Cristina andou sem rumo durante um bom tempo. Ela estava agora no centro da cidade. Ela olhou para cima e avistou o que procurava: Um prédio bem alto. Entrou no prédio sem problemas, era um Hotel e ninguém percebeu a sua figura magra e abatida. Subiu pelo elevador até o andar mais alto que dava num terraço panorâmico. Não havia ninguém ali para aborrecê-la. Ela então pulou a grade de proteção e ficou em pé em uma estreita beirada de cimento agarrada a grade com uma das mãos, olhando para baixo. Os carros passavam pequeninos lá embaixo. A chuva estava retornando bem forte agora molhando todo o seu corpo. Ela fechou os olhos e já não sentia mais frio. Ela tirou a mão da grade e já estava pronta para “voar”...de repente braços fortes a seguraram, impedindo a sua queda. Ela abriu os olhos e viu um jovem moreno com o semblante preocupado a observa-la:
 - Mas que droga! Você me salvou! – ela disse chorando e gritando.
 - “Tenemos que celebrar la vida Y la alegría de estarnos vivos!”.
 - Maria Cristina não acreditou no que ouviu...Era a frase que Juan um dia disse para ela.
 - Quem é você? – ela perguntou
 - JUAN!

Isabel Moura



quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Guerreiro




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Não vá dizer que a capoeira é o que ela não é, nem vá contar o que não viu ninguém falar, então, não vá contar aquilo que não pode contar. Não é todo mundo que vá abrir a boca e dizer eu conheço a capoeira, a capoeira é isso. Nem todos mentais, nem todos sujeitos pode abrir a boca para cantar o que é capoeira”. Mestre Pastinha.



O GUERREIRO


A pequena e bela cidade de Itacaré estava em polvorosa. Ramiro ia chegar!
Só se falava nisto nos últimos dias.O prefeito mandou fazer faixas de “boas vindas” e contratou a melhor banda de forró de todo o Sul da Bahia para tocar durante o grande dia. Ele faria disso um evento inesquecível para a cidade, com direito a fogos de artifício, discurso em palanque e tudo o mais...
Ramiro, o mais bravo e destemido capoeirista de toda região Sul, era agora também, apenas com 24 anos, o mais ilustre e famoso filho de Itacaré.
Todos viram pela televisão, quando ele ganhou o prêmio “Berimbau de Ouro”, sendo assim eleito o melhor capoeirista do Brasil!
O coração apaixonado de Luzia batia excitado e louco de felicidade, pois enfim iria rever o seu grande amor.
Já fazia quase um ano que Ramiro partiu de Itacaré, para se preparar com o grande Mestre “João Pequeno”, no Centro Histórico de Salvador, para participar das etapas do campeonato em várias cidades do Brasil.
Mulato alto, corpo esguio de músculos definidos, dono de olhos claros, esverdeados, da cor do mar de Itacaré, Ramiro encantava a todas as mulheres, nativas e gringas, que punham os olhos nele, mas foi ela, Luzia, que foi a sua eleita.
Luzia, uma morena jovem e brejeira, ainda virgem (coisa rara por estas bandas), tinha um corpo de mulher feita e rosto de anjo. Ela estava com 18 anos e decidira se guardar para o dia de seu casamento com Ramiro.Ela foi criada em Ilhéus e veio de mudança para Itacaré com a família, que montou uma pousada na cidade.
Itacaré, o paraíso de surfistas, vindos de todo o mundo, para desfrutar  suas praias com ondas cristalinas, rodeadas de matas e coqueiros.
Foi numa roda de capoeira que Luzia viu Ramiro pela primeira vez: O grupo se reuniu na praça. Os homens entoavam seus cânticos e jogavam o corpo ao som do berimbau. Quando Ramiro entrou na roda não teve mais para ninguém. Seus golpes eram tão ágeis e rápidos como uma pipa a cortar o ar. O suor inundava o seu corpo talhado e no seu rosto via-se a expressão de um guerreiro.
Quando a roda se desfez, todos vieram cumprimentar Ramiro. Todos menos Zé Capoeira. Luzia soube depois, que Zé Capoeira, negro retinto e de rosto feroz, havia sido amigo de infância de Ramiro. Os dois ensaiaram juntos os primeiros passos de capoeira na beira da praia da Tiririca. Já adolescentes, o ciúme e a inveja começaram a brotar na alma de Zé Capoeira. Ramiro era sempre “o melhor!”. Era o melhor na escola, o melhor na capoeira, conquistava as mais belas mulheres e os homens o admiravam. Ramiro era o “bom moço” que ajudava a família esculpindo figuras na madeira e as vendia para os turistas.
Para chamar a atenção, Zé Capoeira começou a praticar pequenos furtos. Roubava os turistas, que inebriados pela natureza de Itacaré, deixavam seus pertences na areia e iam dar um mergulho.
Certa vez, ele foi pego em flagrante por Ramiro. Os dois brigaram feio em plena praia da Ribeira. Todos pararam para ver a luta. Os golpes de capoeira levantavam areia que se esparramava por toda à parte, pernas e braços moviam-se como armas afiadas e precisas.Ramiro conseguiu derrubar seu adversário, que caiu no chão com o rosto ensanguentado.
  • Você não honra a arte desta luta! – disse Ramiro pegando o produto do roubo e devolvendo –o para os turistas.
Todos bateram palmas para Ramiro enquanto Zé Capoeira permaneceu ali, caído, humilhado. Desde então os dois nunca mais se falaram.
Luzia e Ramiro se conheceram em uma noite de lua cheia, na barraca de forró da praia da Concha. Os dois dançaram, agarradinhos, ao som do “Forró pé de Serra”, durante a noite toda. Eles ficaram enamorados e não se largaram mais, até o dia da partida de Ramiro:
  • Quando eu voltar nós vamos nos casar, Luzia! Vá preparando o enxoval e reze por mim todas os dias. Não esqueça de fazer oferendas no terreiro de “Mãe Joana”.
  • Vá tranquilo, meu xodó, que eu estarei aqui a te esperar!

No mesmo ônibus em que partiu tristonho, agora voltava Ramiro.Ele estava feliz, muito feliz! Não foi fácil enfrentar vários meses de treinamento árduo, longe dos amigos, da família e de Luzia.Mas valeu a pena! Ele agora era um homem realizado. Além do prêmio em dinheiro, ganhara também prestígio e fama. O melhor de tudo é que ele poderia implantar, em Itacaré, o seu sonho: Um grande centro, voltado para o treinamento e estudo da Capoeira, onde também se ensinaria um pouco da cultura dos negros e se desenvolveria trabalhos ligados a arte, pintura e artesanato.
Ramiro sorriu ao ler a enorme faixa na entrada da cidade:
SEJA BEM-VINDO MESTRE RAMIRO! ITACARÉ TE ESPERA DE BRAÇOS ABERTOS!
Já havia uma bandinha de música tocando quando o ônibus parou na rodoviária. Mal a porta do ônibus abriu, ele foi puxado pelo povo e carregado ao som de:
Ramiro é nosso rei!”.
Ele tentava localizar os pais, os irmãos e Luzia, mas a multidão impedia a sua visão.
Ramiro foi arrastado até um palanque de madeira, armado em frente à Igreja. Lá o prefeito foi o primeiro a abraça-lo:
  • Seja bem vindo, meu filho!
Ele então avistou Luzia e a família, todos em cima do palanque, ao lado do prefeito. Ramiro conseguiu  desvencilhar-se dos braços do prefeito e correu para abraçar a família.Depois, puxou Luzia para bem perto de si e deu-lhe um longo beijo:
  • Que saudades meu amor! – ele disse bem baixinho no ouvido de Luzia.
O prefeito começou um longo e interminável discurso que acabou ao som de fogos de artifício a pipocar no ar.
A Banda de Forró foi anunciada e começou a tocar em um palco armado na praia, em frente ao palanque.
Ramiro puxou Luzia e os dois desceram do palanque para  juntarem-se  à multidão.
Foi então que Zé Capoeira surgiu bem na frente de Ramiro, empunhando uma faca:
  • “Vamo” vê quem é mesmo o “melhó” agora! – rosnou o negro com os olhos a tremerem de raiva.
  •   Eu não luto com a ralé! – retrucou Ramiro.
Zé Capoeira, agindo mais rápido do que um raio agarrou Luzia e cravou-lhe uma facada no ventre, largando-a em seguida a sangrar.
  • NÃO!!!!!!!!!!!!!!!! – gritou Ramiro segurando a moça em seus braços.
O sangue de Luzia escorria pelas roupas e mãos  de Ramiro e ele gritava:
  • Não morra, não morra...Eu te amo!

Inúteis foram os gritos desesperados de Ramiro. Ela ainda tentou esboçar um sorriso, mas um acesso de tosse a fez vomitar sangue. O jovem corpo então tremeu e morreu.
Ramiro fechou os olhos da moça com seus dedos, deu –lhe um suave beijo na testa e colocou-a no chão. Ele tirou a camisa, deixando o peito nu com todos os seus músculos a contraírem-se de raiva. Com o sangue de Luzia, ainda quente em suas mãos, ele fez o sinal da cruz em sua testa. Naquele momento ele não era mais um homem...Ele era um animal feroz pronto para matar a sua sede de vingança:
  • Vou acabar com você agora, seu “nego” desgraçado! – rosnou Ramiro.

     

A multidão se afastou e formou-se em torno deles uma roda de capoeira. Desta vez os homens não cantaram e nem o som do berimbau se ouviu. Só havia o barulho do bater de palmas a acompanhar o ritmo frenético da luta.
Zé Capoeira estava ainda com a faca nas mãos e conseguiu ferir levemente o rosto de Ramiro. Os corpos suados dançavam uma dança de vida ou morte. Nunca se viu uma luta tão selvagem como aquela. 
 Ramiro deu uma " meia lua" e  chutou para longe a faca das mãos do seu adversário , em seguida aplicou um "martelo" na cara de Zé Capoeira que tombou com a boca a sangrar e os dentes a caírem por todos os lados. Ramiro não teve piedade; e aplicou o golpe final e mortal : O "voo do morcego" . 
Todos ficaram em silêncio a olhar para o corpo morto do negro estendido no chão.
        Ramiro então berrou: A JUSTIÇA SE FEZ MEU DEUS !

   
       Tempos depois, Ramiro conseguiu realizar o seu sonho: Construiu o “Centro de Arte e Capoeira Luzia Machado”.
Ele lembra com ternura da amada Luzia e reza pela sua alma todas as noites, antes de dormir.
Ramiro é um Guerreiro e como tal continua a lutar pela sua felicidade e cuidar das pessoas.

FIM

Isabel Moura








terça-feira, 29 de setembro de 2009

Nextel


Um dia chato,chuvoso,escuro.
Apenas algumas réstias  de sol ousaram manifestar-se nesta quarta-feira final de inverno.
Fui ao banco pagar uma conta. Na fila do caixa uma mulher com cara de cansada,cabelo loiro lambido,trajando roupas esportivas, fazia ligações ininterruptas de seu celular Nextel ( aquele do barulhinho irritante) obrigando todos da fila a participarem de sua agenda  semanal, marcando e desmarcando horários e compromissos.
Após pagar a conta fui tomar um cafezinho no Shopping mais próximo. Bebi o café com entusiasmo e fui fumar um cigarro do lado de fora do Shopping, próxima a porta de entrada.
Neste ínterim um casal jovem sai do Shopping tomando sorvete de casquinha. Ela dá uma chupada fervorosa em seu sorvete fazendo-o cair no chão, bem em frente a porta de entrada. Ela dá uma risada e vai embora limpando as mãos nas roupas.
Um ruído brusco atrai a minha atenção: um carro que passava na rua freia de supetão e dá marcha a ré na faixa de pedestres e quase atropela uma mulher que atravessava a rua.
Prossigo o meu caminho, entro na padaria e peço: " Oito pães francês por favor". A atendente coloca-os em um saco muito pequeno para acomodar a todos.Penso em reclamar mas já há uma fila enorme atrás de mim cheia de pessoas ávidas por seus pãezinhos.
Faço uma ginástica para segurar "pães que caem", bolsa,guarda-chuva,e pegar alguns trocados para pagá-los no caixa.
Um mendigo sentado em frente a padaria pede com as mãos estendidas: " Dá uma moeda aí pra "comprá" comida , dona!"
Na minha cabeça a dúvida:" Comprar comida ou cachaça?"
Sigo em frente sem dar o dinheiro.
Começa a chover e luto para abrir o guarda - chuva contra o vento.


Isabel Moura