sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Os olhos de Juan


OS OLHOS DE JUAN


Enormes nuvens negras cobriam o céu da cidade de Curitiba naquela manhã de domingo.
Os grandes olhos negros e tristonhos de Maria Cristina observavam a chuva forte, através da janela de seu pequenino quarto.
Ela não gostava de “domingos” e muito menos de chuva: “Arre! Vai ser um dia chato daqueles!” – Ela foi para o banheiro, abriu a torneira da pia, pôs as mãos em forma de concha e lavou o rosto: “Merda!!!!!” – ela gritou. A água estava muita gelada e amorteceu suas mãos e rosto. O inverno tinha finalmente chegado e o frio era intenso lá fora. Ela abriu a torneira do chuveiro elétrico e deixou o vapor d’ água quente tomar conta do ambiente. Só então teve coragem de tirar o pijama de pelúcia e entrar debaixo d’água.
Enquanto a água quente escorria por entre as curvas de seu frágil corpo ela tentava relaxar e pensar em um único motivo para continuar vivendo. Depois de tudo por que passara, ela já não tinha esperanças de ser feliz...

Maria Cristina de Albuquerque, era filha única de uma família rica. Ela estudou nas melhores escolas do Paraná, frequentou lugares refinados, conheceu quase o mundo todo e agora vivia em um pequeno apartamento alugado, em um bairro de classe média baixa.
Ela agora conjugava o verbo do “já tive”: “Já tive um grande e bom apartamento, já tive dinheiro, já tive emprego, já tive marido, já tive filhos... e Amor???...Será que tive?”
Suas lembranças a levaram àquele dia, naquele exato momento, onde tudo na sua vida começou a desmoronar...

Ela estava então com 30 anos, seu corpo era ainda rijo e atraente, apesar de já ter dois filhos, seu rosto muito alvo emoldurado por longos cabelos negros lisos e brilhantes, os olhos pareciam duas pérolas negras e seus lábios eram finos e bem delineados. Ela possuía uma beleza invulgar do tipo que as pessoas olham e pensam: “Ela é uma dama”.
Estavam em um lindo e luxuoso navio, ela e o marido. Marcelo a convencera a viajar, pois ele queria muito descansar uns dias e um Cruzeiro no Caribe seria muito bom para os dois.Ela relutou um pouco em ir, pois não queria deixar os filhos pequenos (Joaquim de dois anos e Pedro de quatro anos) sozinhos por muito tempo e o casamento deles já há muito se arrastava em um relacionamento “morno”.

Não se preocupe querida, sua mãe pode ficar com os meninos por uns dias – disse Marcelo com as passagens já compradas nas mãos a olhar para ela.

O primeiro dia no navio foi muito agradável, Marcelo estava muito solícito e procurava acompanhá-la em tudo. Ele era uma pessoa elegante e discreta e não aparentava os seus quarenta e oito anos; usava o cabelo loiro grisalho sempre bem penteado com um pouco de gel. Os olhos muito azuis e astutos estavam sempre a ler alguma coisa. Ele era obcecado por notícias e informações.
Foi naquela noite, em que seu marido ficou no cassino do navio e ela foi tomar um pouco de ar no convés, que ela conheceu Juan!
Maria Cristina estava com o olhar perdido entre o mar escuro e as estrelas, quando um vento um pouco mais forte, arrancou a delicada fivela que prendia seus longos cabelos negros. Ela abaixou-se para pegar a fivela , com os cabelos a voarem soltos e sua mão esbarrou na mão de um homem jovem que também tentava alcançar a fivela. Os dois levantaram ao mesmo tempo e ele, com a fivela nas mãos, entregou –a para Maria Cristina. Foi então que seus olhos fitaram aqueles olhos...Olhos tão escuros, emoldurados por espessas sobrancelhas...Olhos fortes, sensuais...Olhos que até hoje vinham assombrar – lhe em sonhos...A boca de Juan, uma boca carnuda e macia...A pele de Juan, uma pele morena...O corpo de Juan, viril...Sensual. E como que magnetizados, os dois se beijaram ardentemente, sem dizerem uma palavra sequer. Ele então segurou gentilmente suas mãos e conduziu-a até o seu camarote. Maria Cristina percebeu que era um camarote na ala das pessoas que trabalhavam no navio.Os dois ficaram completamente nus e fizeram amor...Ela nunca sentiu prazer igual em toda a sua vida. Parecia que o mundo todo havia parado e só aquele momento importava...Seus corpos se enroscavam e encaixavam -se perfeitamente. Os dois adormeceram e só na manhã seguinte eles conversaram.
Juan era cubano e trabalhava como garçom no navio. Ele estava fazendo a sua última viagem e desembarcaria no próximo porto, em Miami. Comunicaram-se em inglês e espanhol. Então ele fez aquela fatídica pergunta:  “Don´t you wanna come with me , mi amor?”.
E ela foi...Sim, ela teve a coragem de abandonar o marido em pleno navio, abandonar os filhos e toda a sua família e partir com um desconhecido para ter uma vida que ela não tinha a mínima ideia de como seria. Tudo o que importava era Juan e a paixão enlouquecida, avassaladora que consumiu sua pobre alma.
O primeiro ano que viveram juntos em Miami foi muito bom. Eles moravam em uma casa pequena, porém bem iluminada e com um belo jardim, no bairro cubano. Juan conseguiu logo um emprego de garçom em um grande hotel em Miami Beach e Maria Cristina dava aulas de inglês, idioma que dominava muito bem, para imigrantes cubanos.O dinheiro que ganhavam dava para sustentar um lar decentemente e havia ainda uma “reserva” que Juan tinha feito no navio e ela possuía algumas joias que havia levado consigo na viagem.
Durante este período Maria Cristina tentou comunicar-se com sua família em vão. Seus pais a deserdaram e toda a sua herança ficou a favor de seus filhos e o seu marido era o tutor das crianças.Suas cartas nunca foram respondidas e seus telefonemas eram inúteis, pois todos se recusavam a falar com ela.
As coisas complicaram a partir do segundo ano. Juan passou a chegar tarde em casa e não dar satisfações. O dinheiro reserva começou a sumir. Ela então descobriu que Juan devia dinheiro para bookmakers e se ele não pagasse o que devia, eles iriam mata-lo. Ela vendeu algumas joias e conseguiu levantar a quantia necessária para livra-lo da dívida.
Depois de mil pedidos de desculpas e “não farei mais isto”, Juan foi perdoado.
Mais dois anos se passaram  e mesmo depois de tanto tempo juntos, eles ainda sentiam o fogo da paixão a consumi-los. Costumavam fazer amor em todos os cômodos da casa.
Passaram um bom tempo sem preocupações até que Juan começou a jogar e beber novamente.
Certa noite, desconfiada, Maria Cristina seguiu o seu homem. Viu quando ele entrou em uma casa de jogo. Ela cobriu a cabeça com um lenço e entrou também.Ficou a procurar Juan no ambiente lúgubre. Seu coração começou a bater forte e descompassado ao avista-lo sentado no bar a conversar e alisar o cabelo de uma jovem loira que estava ao seu lado.Uma onda de fúria invadiu Maria Cristina, quando ali, bem diante de seus olhos, ele beijou a moça. Ela então  aproximou - se  do casal, deixou cair o lenço que cobria os seus cabelos negros, olhou bem dentro dos olhos de seu amante e foi embora sem pronunciar uma palavra.
Tudo ela poderia ter suportado, mas aquilo foi cruel por demais. O homem a quem amava com tanto fervor e por quem abdicara da própria vida a estava traindo!
Mais uma vez Juan desculpou-se : “ Ella no es nada para mí, Yo te amo!”.
Mais uma vez ela perdoou aquele homem que havia roubado o seu coração, a sua razão.
Por mais quatro anos, ela ainda continuou ao lado de Juan, aturando suas bebedeiras, suas dívidas, suas mulheres.
Também havia momentos felizes. Eles tinham uma roda muito alegre de amigos, imigrantes cubanos, que se reuniam toda semana para cantar, dançar, comer, beber e rir.
Certa vez ela comentou com Juan: “Como seu povo é alegre!” E ele respondeu:  “Nosotros tenemos que celebrar la vida y la alegría de estarnos vivos, mi amor!”.
Os dois costumavam sair para passear aos domingos. Iam à praia, andavam de mãos dadas na beira do mar e esperavam até o surgir da lua para fazerem um pedido. Depois iam para casa e faziam amor...Um amor gostoso, sem pressa, sem culpas.
Um dia Maria Cristina descobriu, o que todos no bairro já sabiam, que Juan engravidou uma moça de apenas 16 anos. Ela resolveu finalmente tomar uma atitude: Vendeu o resto de suas joias e comprou uma passagem para o Brasil.
No dia de sua partida, Juan a observava de longe, no saguão de embarque do aeroporto. Ele poderia tê-la impedido de partir, mas não o fez.

Maria Cristina desembarcou no aeroporto de Curitiba com o coração dilacerado, sem ter um rumo certo a seguir: “O que fazer?”. “Para onde ir?”.
Nunca havia se sentido tão sozinha no mundo. Decidiu procurar um hotel, bem barato, para se hospedar, pois tinha pouco dinheiro consigo e tentaria se comunicar com a família no dia seguinte.
Conseguiu falar com o pai. Ele estava envelhecido e nada disposto a perdoa-la:

 - Depois de quase oito anos você resolve aparecer, como se nada tivesse acontecido? Não tenho mais filha! A minha filha morreu naquele maldito navio!
 - E os meus filhos, Pedrinho e Joaquim? Como eles estão?
- Eles pensam que você está  morta. Foi o que dissemos para eles.
 - MORTA? Mas isto não é justo...Eu tentei me comunicar com eles e com vocês todos estes anos e vocês não respondiam minhas cartas, nem telefonemas...

O velho então olhou bem dentro dos olhos da filha e disse:

 - Acredite Maria Cristina, foi melhor assim!
 - Mas onde eles estão? Onde estão morando?
 - O seu ex - marido casou-se novamente. Seus filhos estão morando em São Paulo com ele e a atual mulher.
 - E mamãe, como ela está?
 - Ela está bem.Está em uma clínica de repouso, em um SPA em Campos do Jordão.
 - Eu quero falar com ela - insistiu Maria Cristina.
 - Eu lhe proíbo! Você não vai perturbar a sua mãe! Ela já sofreu demais por sua causa!

Maria Cristina então foi embora, com as lágrimas a escorrer por todo o seu rosto, já não mais tão jovem e viçoso. As marcas de sofrimento começavam a invadir o seu corpo e a sua alma.
Ela tentou prosseguir a sua vida, ir a luta. Conseguiu um emprego de professora de inglês numa escola e alugou um pequeno apartamento
Pesadelos a perseguiam todas as noites. Sonhava com os olhos de Juan a observa-la e via seus filhos transformarem-se em homens, renega-la e  jogar  pedras no seu corpo.
Ela passou a beber todas as noites. Bebia para relaxar, para conseguir dormir. Depois passou a beber durante o dia, para conseguir viver e seguir adiante.Quando ela se deu conta, o vício do álcool já havia se apoderado do seu ser. Seus alunos começaram a perceber o seu estado de embriaguez e reclamaram à diretoria, o que ocasionou na demissão de Maria Cristina.

A água do chuveiro elétrico começou a esfriar e a sensação desagradável a trouxe de volta à realidade. Ela fechou a torneira do chuveiro, enxugou-se bem rápido, enfiou uma roupa qualquer, olhou pela janela e observou que a chuva havia diminuído. Ela abriu a porta e saiu para a rua deserta e fria daquele domingo.
Maria Cristina andou sem rumo durante um bom tempo. Ela estava agora no centro da cidade. Ela olhou para cima e avistou o que procurava: Um prédio bem alto. Entrou no prédio sem problemas, era um Hotel e ninguém percebeu a sua figura magra e abatida. Subiu pelo elevador até o andar mais alto que dava num terraço panorâmico. Não havia ninguém ali para aborrecê-la. Ela então pulou a grade de proteção e ficou em pé em uma estreita beirada de cimento agarrada a grade com uma das mãos, olhando para baixo. Os carros passavam pequeninos lá embaixo. A chuva estava retornando bem forte agora molhando todo o seu corpo. Ela fechou os olhos e já não sentia mais frio. Ela tirou a mão da grade e já estava pronta para “voar”...de repente braços fortes a seguraram, impedindo a sua queda. Ela abriu os olhos e viu um jovem moreno com o semblante preocupado a observa-la:
 - Mas que droga! Você me salvou! – ela disse chorando e gritando.
 - “Tenemos que celebrar la vida Y la alegría de estarnos vivos!”.
 - Maria Cristina não acreditou no que ouviu...Era a frase que Juan um dia disse para ela.
 - Quem é você? – ela perguntou
 - JUAN!

Isabel Moura



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