quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O Guerreiro




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Não vá dizer que a capoeira é o que ela não é, nem vá contar o que não viu ninguém falar, então, não vá contar aquilo que não pode contar. Não é todo mundo que vá abrir a boca e dizer eu conheço a capoeira, a capoeira é isso. Nem todos mentais, nem todos sujeitos pode abrir a boca para cantar o que é capoeira”. Mestre Pastinha.



O GUERREIRO


A pequena e bela cidade de Itacaré estava em polvorosa. Ramiro ia chegar!
Só se falava nisto nos últimos dias.O prefeito mandou fazer faixas de “boas vindas” e contratou a melhor banda de forró de todo o Sul da Bahia para tocar durante o grande dia. Ele faria disso um evento inesquecível para a cidade, com direito a fogos de artifício, discurso em palanque e tudo o mais...
Ramiro, o mais bravo e destemido capoeirista de toda região Sul, era agora também, apenas com 24 anos, o mais ilustre e famoso filho de Itacaré.
Todos viram pela televisão, quando ele ganhou o prêmio “Berimbau de Ouro”, sendo assim eleito o melhor capoeirista do Brasil!
O coração apaixonado de Luzia batia excitado e louco de felicidade, pois enfim iria rever o seu grande amor.
Já fazia quase um ano que Ramiro partiu de Itacaré, para se preparar com o grande Mestre “João Pequeno”, no Centro Histórico de Salvador, para participar das etapas do campeonato em várias cidades do Brasil.
Mulato alto, corpo esguio de músculos definidos, dono de olhos claros, esverdeados, da cor do mar de Itacaré, Ramiro encantava a todas as mulheres, nativas e gringas, que punham os olhos nele, mas foi ela, Luzia, que foi a sua eleita.
Luzia, uma morena jovem e brejeira, ainda virgem (coisa rara por estas bandas), tinha um corpo de mulher feita e rosto de anjo. Ela estava com 18 anos e decidira se guardar para o dia de seu casamento com Ramiro.Ela foi criada em Ilhéus e veio de mudança para Itacaré com a família, que montou uma pousada na cidade.
Itacaré, o paraíso de surfistas, vindos de todo o mundo, para desfrutar  suas praias com ondas cristalinas, rodeadas de matas e coqueiros.
Foi numa roda de capoeira que Luzia viu Ramiro pela primeira vez: O grupo se reuniu na praça. Os homens entoavam seus cânticos e jogavam o corpo ao som do berimbau. Quando Ramiro entrou na roda não teve mais para ninguém. Seus golpes eram tão ágeis e rápidos como uma pipa a cortar o ar. O suor inundava o seu corpo talhado e no seu rosto via-se a expressão de um guerreiro.
Quando a roda se desfez, todos vieram cumprimentar Ramiro. Todos menos Zé Capoeira. Luzia soube depois, que Zé Capoeira, negro retinto e de rosto feroz, havia sido amigo de infância de Ramiro. Os dois ensaiaram juntos os primeiros passos de capoeira na beira da praia da Tiririca. Já adolescentes, o ciúme e a inveja começaram a brotar na alma de Zé Capoeira. Ramiro era sempre “o melhor!”. Era o melhor na escola, o melhor na capoeira, conquistava as mais belas mulheres e os homens o admiravam. Ramiro era o “bom moço” que ajudava a família esculpindo figuras na madeira e as vendia para os turistas.
Para chamar a atenção, Zé Capoeira começou a praticar pequenos furtos. Roubava os turistas, que inebriados pela natureza de Itacaré, deixavam seus pertences na areia e iam dar um mergulho.
Certa vez, ele foi pego em flagrante por Ramiro. Os dois brigaram feio em plena praia da Ribeira. Todos pararam para ver a luta. Os golpes de capoeira levantavam areia que se esparramava por toda à parte, pernas e braços moviam-se como armas afiadas e precisas.Ramiro conseguiu derrubar seu adversário, que caiu no chão com o rosto ensanguentado.
  • Você não honra a arte desta luta! – disse Ramiro pegando o produto do roubo e devolvendo –o para os turistas.
Todos bateram palmas para Ramiro enquanto Zé Capoeira permaneceu ali, caído, humilhado. Desde então os dois nunca mais se falaram.
Luzia e Ramiro se conheceram em uma noite de lua cheia, na barraca de forró da praia da Concha. Os dois dançaram, agarradinhos, ao som do “Forró pé de Serra”, durante a noite toda. Eles ficaram enamorados e não se largaram mais, até o dia da partida de Ramiro:
  • Quando eu voltar nós vamos nos casar, Luzia! Vá preparando o enxoval e reze por mim todas os dias. Não esqueça de fazer oferendas no terreiro de “Mãe Joana”.
  • Vá tranquilo, meu xodó, que eu estarei aqui a te esperar!

No mesmo ônibus em que partiu tristonho, agora voltava Ramiro.Ele estava feliz, muito feliz! Não foi fácil enfrentar vários meses de treinamento árduo, longe dos amigos, da família e de Luzia.Mas valeu a pena! Ele agora era um homem realizado. Além do prêmio em dinheiro, ganhara também prestígio e fama. O melhor de tudo é que ele poderia implantar, em Itacaré, o seu sonho: Um grande centro, voltado para o treinamento e estudo da Capoeira, onde também se ensinaria um pouco da cultura dos negros e se desenvolveria trabalhos ligados a arte, pintura e artesanato.
Ramiro sorriu ao ler a enorme faixa na entrada da cidade:
SEJA BEM-VINDO MESTRE RAMIRO! ITACARÉ TE ESPERA DE BRAÇOS ABERTOS!
Já havia uma bandinha de música tocando quando o ônibus parou na rodoviária. Mal a porta do ônibus abriu, ele foi puxado pelo povo e carregado ao som de:
Ramiro é nosso rei!”.
Ele tentava localizar os pais, os irmãos e Luzia, mas a multidão impedia a sua visão.
Ramiro foi arrastado até um palanque de madeira, armado em frente à Igreja. Lá o prefeito foi o primeiro a abraça-lo:
  • Seja bem vindo, meu filho!
Ele então avistou Luzia e a família, todos em cima do palanque, ao lado do prefeito. Ramiro conseguiu  desvencilhar-se dos braços do prefeito e correu para abraçar a família.Depois, puxou Luzia para bem perto de si e deu-lhe um longo beijo:
  • Que saudades meu amor! – ele disse bem baixinho no ouvido de Luzia.
O prefeito começou um longo e interminável discurso que acabou ao som de fogos de artifício a pipocar no ar.
A Banda de Forró foi anunciada e começou a tocar em um palco armado na praia, em frente ao palanque.
Ramiro puxou Luzia e os dois desceram do palanque para  juntarem-se  à multidão.
Foi então que Zé Capoeira surgiu bem na frente de Ramiro, empunhando uma faca:
  • “Vamo” vê quem é mesmo o “melhó” agora! – rosnou o negro com os olhos a tremerem de raiva.
  •   Eu não luto com a ralé! – retrucou Ramiro.
Zé Capoeira, agindo mais rápido do que um raio agarrou Luzia e cravou-lhe uma facada no ventre, largando-a em seguida a sangrar.
  • NÃO!!!!!!!!!!!!!!!! – gritou Ramiro segurando a moça em seus braços.
O sangue de Luzia escorria pelas roupas e mãos  de Ramiro e ele gritava:
  • Não morra, não morra...Eu te amo!

Inúteis foram os gritos desesperados de Ramiro. Ela ainda tentou esboçar um sorriso, mas um acesso de tosse a fez vomitar sangue. O jovem corpo então tremeu e morreu.
Ramiro fechou os olhos da moça com seus dedos, deu –lhe um suave beijo na testa e colocou-a no chão. Ele tirou a camisa, deixando o peito nu com todos os seus músculos a contraírem-se de raiva. Com o sangue de Luzia, ainda quente em suas mãos, ele fez o sinal da cruz em sua testa. Naquele momento ele não era mais um homem...Ele era um animal feroz pronto para matar a sua sede de vingança:
  • Vou acabar com você agora, seu “nego” desgraçado! – rosnou Ramiro.

     

A multidão se afastou e formou-se em torno deles uma roda de capoeira. Desta vez os homens não cantaram e nem o som do berimbau se ouviu. Só havia o barulho do bater de palmas a acompanhar o ritmo frenético da luta.
Zé Capoeira estava ainda com a faca nas mãos e conseguiu ferir levemente o rosto de Ramiro. Os corpos suados dançavam uma dança de vida ou morte. Nunca se viu uma luta tão selvagem como aquela. 
 Ramiro deu uma " meia lua" e  chutou para longe a faca das mãos do seu adversário , em seguida aplicou um "martelo" na cara de Zé Capoeira que tombou com a boca a sangrar e os dentes a caírem por todos os lados. Ramiro não teve piedade; e aplicou o golpe final e mortal : O "voo do morcego" . 
Todos ficaram em silêncio a olhar para o corpo morto do negro estendido no chão.
        Ramiro então berrou: A JUSTIÇA SE FEZ MEU DEUS !

   
       Tempos depois, Ramiro conseguiu realizar o seu sonho: Construiu o “Centro de Arte e Capoeira Luzia Machado”.
Ele lembra com ternura da amada Luzia e reza pela sua alma todas as noites, antes de dormir.
Ramiro é um Guerreiro e como tal continua a lutar pela sua felicidade e cuidar das pessoas.

FIM

Isabel Moura








terça-feira, 29 de setembro de 2009

Nextel


Um dia chato,chuvoso,escuro.
Apenas algumas réstias  de sol ousaram manifestar-se nesta quarta-feira final de inverno.
Fui ao banco pagar uma conta. Na fila do caixa uma mulher com cara de cansada,cabelo loiro lambido,trajando roupas esportivas, fazia ligações ininterruptas de seu celular Nextel ( aquele do barulhinho irritante) obrigando todos da fila a participarem de sua agenda  semanal, marcando e desmarcando horários e compromissos.
Após pagar a conta fui tomar um cafezinho no Shopping mais próximo. Bebi o café com entusiasmo e fui fumar um cigarro do lado de fora do Shopping, próxima a porta de entrada.
Neste ínterim um casal jovem sai do Shopping tomando sorvete de casquinha. Ela dá uma chupada fervorosa em seu sorvete fazendo-o cair no chão, bem em frente a porta de entrada. Ela dá uma risada e vai embora limpando as mãos nas roupas.
Um ruído brusco atrai a minha atenção: um carro que passava na rua freia de supetão e dá marcha a ré na faixa de pedestres e quase atropela uma mulher que atravessava a rua.
Prossigo o meu caminho, entro na padaria e peço: " Oito pães francês por favor". A atendente coloca-os em um saco muito pequeno para acomodar a todos.Penso em reclamar mas já há uma fila enorme atrás de mim cheia de pessoas ávidas por seus pãezinhos.
Faço uma ginástica para segurar "pães que caem", bolsa,guarda-chuva,e pegar alguns trocados para pagá-los no caixa.
Um mendigo sentado em frente a padaria pede com as mãos estendidas: " Dá uma moeda aí pra "comprá" comida , dona!"
Na minha cabeça a dúvida:" Comprar comida ou cachaça?"
Sigo em frente sem dar o dinheiro.
Começa a chover e luto para abrir o guarda - chuva contra o vento.


Isabel Moura